Exatamente como o pai se o pai tivesse sabido tanto sobre isso na noite antes de eu ir até lá como sabia no dia seguinte, quando voltei pensando Velho louco e impotente que percebeu enfim que devia haver algum limite até para a capacidade de um demônio de fazer mal, que deve ter visto a sua situação como a da garota de circo, do pônei, que percebe que a principal melodia ao ritmo da qual dança não vem de corneta e rabeca e tambor, mas de relógio e calendário, deve ter-se visto como o velho canhão gasto que percebe que pode dar somente mais um tiro e desabar no chão por efeito de sua própria detonação e recuo furiosos, que olhou ao redor e viu a cena que ainda estava dentro de seu campo de visão e seu alcance e viu o filho sumido, desaparecido, algo mais insuperável para ele do que se o filho estivesse morto, pois agora (se o filho ainda vivia) seu nome seria diferente e quem haveria para chamá-lo por ele seriam estranhos, e qualquer afloramento de dragão criado pelo sangue dos Sutpen que o filho pudesse semear no corpo de uma estranha qualquer continuaria, portanto, a tradição, realizaria o mal e o dano hereditários, com outro nome e entre pessoas que jamais teriam ouvido o nome certo; a filha condenada à condição de solteirona, ela que escolhera essa condição antes mesmo de haver alguém chamado Charles Bon, já que a tia que viera socorrê-la em seu luto e sofrimento não encontrara nenhum dos dois, mas sim aquele rosto calmo absolutamente impenetrável entre um vestido costurado em casa e uma touca de sol, rosto visto diante de uma porta fechada e de novo em meio a um torvelinho de galinhas enquanto Jones fabricava o caixão, e que ela manteve durante o ano seguinte em que a tia morou lá e as três mulheres teceram as próprias roupas e cultivaram a própria comida e cortaram a lenha com que a cozinhavam (descontando a ajuda que receberam de Jones, que vivia com a neta na cabana de pesca abandonada com o telhado quase caindo e a varanda apodrecendo e encostada a ela a foice enferrujada que Sutpen lhe emprestaria, o faria tomar emprestada para cortar as ervas daninhas da porta — e que por fim o forçaria a usar, mas não para cortar ervas daninhas, ao menos não ervas daninhas vegetais — ficaria encostada por dois anos) e que ainda manteve depois que a indignação da tia a levou de novo para a cidade para viver de hortaliças roubadas e de cestas anônimas deixadas nos degraus da frente à noite, e as três, as duas irmãs, negra e branca, e a tia a doze milhas de distância vigiando de seu lugar enquanto as duas irmãs vigiavam do delas o velho demônio, o Fausto antiquíssimo, varicoso e desesperado, içando sua última vela agora com a mão do Credor já sobre o seu ombro, tocando sua lojinha rural agora para poder obter seu pão e sua carne, barganhando tediosamente por míseros níqueis com brancos e negros rapaces e empobrecidos, ele que em certa época poderia ter galopado dez milhas em qualquer direção sem cruzar a própria fronteira, tirando de seu magro estoque os laços de fita e contas baratas e a bala mofada de cor viva com que até mesmo um velho pode seduzir uma menina roceira de quinze anos, para arruinar a neta de seu sócio, esse Jones — esse branco desengonçado e maleitoso a quem dera permissão, catorze anos antes, para se instalar na cabana de pesca abandonada com a neta de um ano —, Jones, sócio, carregador e balconista que, por ordem do demônio, retirava com as próprias mãos (e talvez entregava também) as balas, contas e fitas da vitrine, e media o próprio pano com o qual Judith (que não ficara de luto e não lamentara) ajudou a neta a fazer um vestido para desfilar diante dos desocupados, dos olhares de soslaio e das línguas, até que seu ventre volumoso a ensinou a sentir embaraço — ou talvez medo; Jones, que antes de 61 não tinha nem mesmo permissão de se aproximar da frente da casa e que nos quatro anos seguintes só chegou até a porta da cozinha, e isso somente quando trazia a caça, o peixe e os legumes com os quais a esposa do futuro sedutor e a filha (e Clytie também, a única que restara dos criados dos negros, aquela que o proibiria de cruzar a porta da cozinha com o que trouxera) dependiam para manter a vida, mas que agora entrava na própria casa nas (muito frequentes agora) tardes em que o demônio subitamente amaldiçoava a loja sem clientes, trancava a porta e ia até os fundos da casa onde, no mesmo tom com que costumava se dirigir a seu ordenança ou mesmo a seus criados domésticos quando os tinha (e com que sem dúvida mandava Jones pegar na vitrine as fitas e contas e balas), ordenava que Jones fosse buscar o garrafão, e os dois (e Jones inclusive sentado agora, como nos velhos tempos, as velhas tardes ociosas de domingo, de monótona paz, que eles passavam embaixo da parreira de muscadínea no quintal, o demônio deitado na rede enquanto Jones se acocorava encostado ao pilar, levantando-se de tempos em tempos para servir o demônio do garrafão empalhado e do balde de água fresca que ele buscara na fonte a mais de uma milha de distância e então se acocorando de novo, gargalhando e cacarejando e dizendo “Boa, sinhô Toum” cada vez que o demônio parava de falar) — os dois bebendo alternadamente do garrafão e o demônio não deitado agora, nem mesmo sentado, mas procurando depois do terceiro ou segundo gole aquele estado invicto, impotente e furioso de velho em que se ergueria, bamboleando e tropeçando e berrando por seu cavalo e por pistolas para cavalgar sozinho até Washington e matar Lincoln (mais ou menos um ano tarde demais para isso) e Sherman, gritando: “Matem! Tá tudo bem. Eles ainda num mataro nóis, mataro?” — esse Jones que, depois que o demônio foi embora com o regimento quando a neta tinha apenas oito anos, diria às pessoas que ele “tarra cuidando do lugá e dos preto do Major” antes mesmo de elas terem tempo de lhe perguntar por que não estava com as tropas, e que talvez com o tempo tenha passado a acreditar na própria mentira, ele que estava entre os primeiros a saudar o demônio quando ele voltou, a encontrá-lo no portão e dizer: “Bem, Coroné, eles mataro nóis mas ainda num pegaro nóis, pegaro?”, ele que inclusive trabalhou, labutou, suou sob as ordens do demônio naquele primeiro período em que este acreditou que poderia, apenas com sua indomável força de vontade, fazer a Centena de Sutpen voltar a ser aquilo de que ele se lembrava e que tinha perdido, labutou sem nenhuma esperança de pagamento ou recompensa, ele que deve ter visto muito antes do demônio ver (ou admitir) que a tarefa era inútil — Jones, o cego que aparentemente ainda via naquele destroço furioso e lúbrico o belo homem de outrora que um dia galopara no puro-sangue negro por aquele domínio cujas duas fronteiras o olho não conseguia ver ao mesmo tempo de nenhum ponto.
Author: Helena Oliveira
Published at: 2025-07-01 19:33:54
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