Josephine Quinn e a visão tradicional da história

Josephine Quinn e a visão tradicional da história


A teoria do choque de civilizações de Huntington foi alvo, logo quando da sua apresentação, de uma barragem de reparos, contestações e acusações, nomeadamente a de que seria estruturalmente racista, a de que estaria inquinado por preconceitos contra o mundo não-ocidental, a de que se alimentaria do “medo do Outro”, a de que não passaria de uma recauchutagem das teses de Spengler e Toynbee, a de que serviria de justificação ao Ocidente para hostilizar o mundo islâmico, ou a de que, ao incentivar o belicismo, estaria a prestar um favor ao “complexo militar-industrial” ocidental. Como Quinn faria 20 anos depois, Hobson declara pretender oferecer uma perspectiva da história que escape ao paradigma eurocêntrico dominante e invoca, para o efeito, vários factos históricos indiscutíveis e há muito conhecidos e aceites entre os historiadores: muitos progressos feitos pela civilização ocidental assentaram em inovações provenientes da China, como o papel, a imprensa de tipos móveis, a pólvora; já existia uma rede de comércio global antes de Vasco da Gama ter inaugurado a rota marítima entre a Europa e o Oriente; quando os europeus começaram a comerciar directamente com o Oriente, a China e a Índia não só eram as maiores potências económicas mundiais, como ocupavam essa posição há muitos séculos e apenas a perderiam no início do século XIX, quando a Europa entrou na Revolução Industrial; as potências europeias não ascenderam a uma posição de domínio sobre o resto do mundo pela superioridade da sua cultura e dos seus valores morais, nem pela natureza mais democrática das suas instituições, mas pelo superior poderio bélico. Ao contrário do que se passa nos domínios da inteligência artificial, da física de materiais, da computação quântica, da neuroquímica, da nanotecnologia, da genética ou da astronomia, em que há descobertas disruptivas, surpreendentes ou (pelo menos) promissoras todos os meses, o conhecimento da história, ainda que continue a dilatar-se e a ganhar novas nuances, está razoavelmente consolidado e, à medida que as escavações arqueológicas, o estudo de velhos manuscritos, a decifração de inscrições, o restauro de peças de cerâmica, a sequenciação genética de restos humanos e a reconstituição de temperaturas e pluviosidades pretéritas pela paleoclimatologia e a reconstituição do coberto vegetal de antanho através da paleopalinologia, fazem o seu laborioso, paciente e discreto progresso, os espaços em branco que restam na história do mundo vão sendo preenchidos e vão deixando cada vez menos margem de manobra para revelações inesperadas.

Author: José Carlos Fernandes


Published at: 2025-05-04 13:14:06

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