Herberto Helder. “O deslumbrado ódio ao quotidiano”

Herberto Helder. “O deslumbrado ódio ao quotidiano”


O efeito de surpresa e sobressalto acaba por ser muitas vezes esse elemento condutor, sendo uma poesia que pretende caçar, produzir o pasmo, sufocar o leitor em habilidades e por meio de sobreposições sinestésicas, gerando enlevo, amordaçando a razão, e anestesiando os outros sentidos… “a vida inteira para fundar um poema,/ a pulso,/ um só, arterial, com abrasadura,/ que ao dizê-lo os dentes firam a língua,/ que o idioma se fira na boca inábil que o diga,/ só quase pressentimento fonético,/ filológico,/ mas que atenção, paixão, alumiação/ ¿e se me tocam na boca?/ de noite, a mexer na seda para, desdobrando-se,/ a noite extraterrestre bruxulear um pouco,/ o último,/ assim como que húmido, animal, intuitivo, de origem,/ papel de seda que a rútila força lírica rompa, (…) obra-prima do êxtase das línguas,/ tudo movido virgem,/ e eu que tenho a meu cargo delicadeza e inebriamento/ ¿tenho acaso no nome o inominável?/ mão batida, curta, sem estudo, maravilhada apenas,/ nada a ver com luminotecnia prática ou teórica,/ mas com grandes mãos, e eu brilhei,/ o meu nome brilhou entrando na frase inconsútil,/ e depois o ar, e os objectos que ocorrem: onde?/ fora? Mas também não há que ficar refém, e uma das coisas que a biografia de Herberto Helder deixa bem claro é como, desde os seus tempos de jovem perigoso, sendo sempre cauteloso e até avaro em confidências quanto ao enredo e expansão dos elementos que o inspiraram, nada na sua obra assume um efeito acidental, antes tudo se recobre de um carácter raro, de um sentido longínquo, de um vigor invulgaríssimo, e vamo-nos dando conta do grau de premeditação que há em cada um dos passos que foi dando e corrigindo, ficando claro também como cambaleava entre momentos de grandiosidade e outros em que se encolhia e parecia reduzido a um resto humilhado das suas projecções, e como, às tantas, aprendeu a virar a seu favor “esse processo de alternância dinâmica entre êxtases e depressões” (João Pedro George), e como uma e outra vez se regenerou voltando-se para os prodígios. No ensejo de reinstaurar o sentimento de uma eternidade dançante, um modo de costurar as coisas a um ponto em que a nossa percepção do tempo seja capaz de transcender e rivalizar com o Sol, Herberto recupera o sentido da realidade, despedaçando-a e devolvendo na forma de “cenas” que emergem a partir dos fundos da noite… “algum ‘teatro’ vem declarar-se pronto para as suas ‘leituras’/ o ‘movimento’ procura o ‘corpo’/ propriamente/ permissivo limpo uma ‘biografia’ de animal/ feita/ da sua fome e sede e da sua viagem ‘até onde’/ ‘lugares’ encontrados ‘narrativas’ a ocupar uma ‘atenção última’/ a flor que se organizou de um povoamento/ de ‘esforços’ florais ‘tentativas’ erros riquíssimos/ a cena traz ondas de treva o silêncio que a ‘tradição’ manda: ‘gaste-se’/ traz alguns truques de ‘estancar e escoar’”…

Author: Jornal i


Published at: 2025-06-11 12:25:32

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