A produção de artigos científicos falsificados (por vezes de forma grosseira e inepta), os esquemas crapulosos que permitem que aqueles passem pelo crivo da “revisão pelos pares”, o alastramento das “fábricas de artigos”, a tendência para que cada artigo credute largas dezenas ou até centenas de autores e a obsessão doentia com as “métricas” de produção científica (“publicar ou perecer” tornou-se no lema da academia do século XXI) são alarmantes, mas são apenas uma parte do problema, uma vez que, por enquanto, a academia prefere ignorar a praga da “ciência da treta”, isto é, a proliferação de estudos que, sendo correctos e honestos do ponto de vista formal, são estéreis, inconclusivos ou até francamente asininos, servem somente para justificar o cargo, o financiamento ou a bolsa do investigador e são, amiúde, intelectualmente desonestos (ver Ensino superior e investigação: Dentro da torre de marfim). Temos aqui, temperado pelo registo de humor impassível (“pince sans rire”), pelo tom aveludado e tranquilizador da voz de Anderson e pela solenidade e pelo balanço regular e embalador do substrato musical, um retrato desconsolador da irreprimível pulsão da civilização moderna para criar novas “centralidades” e “acessibilidades” (para empregar dois termos queridos aos nossos governantes, sobretudo aos autarcas), para revestir o solo com betão e alcatrão e para conceber e construir cidades em função do automóvel; da erosão dos sentimentos de pertença e de comunidade nas urbes modernas; do feroz individualismo que conquistou proeminência na sociedade do progresso e do consumo; da inclinação da humanidade para venerar acriticamente a ciência e a tecnologia; da ilusão de omnipotência e impunidade que estas incutem no Homo sapiens; da sensação de desamparo que se oculta no fundo da alma do homem e que, apesar das suas espantosas descobertas e da capacidade para moldar a Terra a seu bel-prazer, leva a que se sinta, onde quer que vá, um estranho. Os elementos das gerações Millennial, Z e Alfa, neurasténicos, sobreprotegidos, sobrediagnosticados e sobremedicados, viciados em ansiolíticos e antidepressivos antes de terem tido de enfrentar reais razões para se sentirem ansiosos e deprimidos, que medem o seu próprio valor e o valor dos outros exclusivamente pelos números de seguidores e de “likes”, que, desde tenra idade, passam a maior parte do seu tempo de vigília aprisionados em fantasmagorias digitais que vão do ridículo ao tenebroso, escravos de “trends” patéticos e de influencers desmiolados ou venais (ou ambas as coisas), ignorantes da história, desdenhosos da cidadania e dos seus direitos, deveres e vínculos e desprovidos de verdadeiro livre arbítrio, serão os que mais facilmente se deixarão aliciar pela ideia de rejeitar o mundo exterior para ficarem sozinhos consigo mesmos no labirinto de espelhos e espectros que a Máquina irá talhando à sua medida.
Author: José Carlos Fernandes
Published at: 2025-10-04 10:35:45
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