E também estes cavaleiros modernos, que tanto estropício têm causado ao investirem irreflectidamente contra o que julgam serem gigantes malévolos (o wokismo, o feminismo, os ciganos, os imigrantes nepaleses, os climatologistas, as vacinas, a ideologia de género, o marxismo cultural, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a laicização da sociedade, o rendimento social de inserção, o próprio conceito de Estado social), vivem enredados num mundo de fantasias malsãs, gerado não pela leitura compulsiva de romances de cavalaria, mas pela imersão prolongada na inesgotável correnteza de falsidades, de meias-verdades, de adulterações cavilosas, de comentários asininos, de acusações torpes e de teorias conspirativas inverosímeis que circula pela Internet e, em particular, pelas redes (ditas) sociais. Como os 49 dias que passou no cargo são manifestamente insuficientes para preencher 320 páginas, Truss adicionou generosas quantidades de excipiente: há espaço para bajulação ao sumo pontífice da extrema-direita populista (“como fã, desde a primeira hora, do reality show The Apprentice, adorava os bordões e os provocadores conselhos sobre negócios de Trump”); para atribuir a brevidade do seu calamitoso mandato como primeira-ministra às conspirações e sabotagens do Deep State; para descartar qualquer responsabilidade pelos fiascos na sua carreira e reescrever a história da sua vida como um desfile triunfal; para dar vazão ao seu narcisismo e ao seu ressabiamento por a opinião pública e os media não terem reconhecido o seu génio político; e para apresentar a sua solução para salvar o Ocidente do colapso iminente, que passa por desmantelar o “Estado esquerdista”, a ONU, a Organização Mundial de Saúde e a Organização Mundial do Comércio. A reivindicação do papel de defensor da civilização ocidental confere, automaticamente, uma aura nobre e heróica e tem potencial para agregar vastos sectores da população, sobretudo os que, no Ocidente, 1) se sentem mais desorientados, perante uma realidade que muda a uma velocidade impossível de acompanhar e uma torrente de informação que ultrapassa a capacidade de processamento dos mais lestos de espírito; 2) encaram com crescente apreensão a “invasão” do seu território ancestral por levas de estrangeiros; e 3) temem um futuro cada vez mais imprevisível, em que uma das poucas certezas é a diminuição do peso do Ocidente nos tabuleiros geopolítico e económico, após vários séculos de supremacia (na verdade foram apenas dois, ainda que prevaleça na opinião pública a ideia de que foram pelo menos 25).
Author: José Carlos Fernandes
Published at: 2025-06-21 12:43:59
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