Entre AD e PS, os papéis invertiam-se: o argumento da prioridade absoluta das «contas certas», com que a ortodoxia neoliberal europeia e portuguesa justificou os cortes e as transferências de rendimentos do trabalho para o capital na governação com a Troika, era agora marca de um PS que, no governo, invocava as «contas certas» para não ouvir uma sociedade que lhe gritava que fizesse os investimentos necessários, inadiáveis, em serviços públicos e políticas de habitação, e que aumentasse os rendimentos estagnados de trabalhadores e pensionistas, num contexto inflacionista muito penalizador dos preços dos bens alimentares. Por outro lado, pode ajudar a compreender quais são as linhas de continuidade que ligam os liberais nas suas variantes políticas, as quais, sendo ativáveis a qualquer momento, podem perenizar por décadas a entrega à especulação privada da Segurança Social e a desmontagem do Serviço Nacional de Saúde (SNS), o ataque ao salário mínimo nacional e à fiscalidade progressiva, a liberalização dos despedimentos e a proibição dos défices públicos. Em maio de 2002, quando França acabava de passar, no mês anterior, pelo choque da primeira vez que a extrema-direita ficava em segundo lugar numas eleições, o diretor de então deste jornal, Ignacio Ramonet, escreveu num editorial intitulado «A Peste»: «Mas se, passado o momento de susto, os mesmos partidos de sempre continuarem com a sua política liberal de privatizações, de desmantelamento dos serviços públicos, de criação de fundos de pensões, de aceitação dos despedimentos por conveniência bolsista — em suma, se continuarem a opor-se frontalmente às aspirações populares a uma sociedade mais justa (…) —, nada nos diz que o neofascismo, aliado às forças colaboracionistas de sempre, não conseguirá levar a melhor da próxima vez...» Aqui chegados, convinha partirmos noutra direção.
Author: Sandra Monteiro
Published at: 2025-06-04 12:00:33
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