Porque se a peça hoje integra a coleção de alguns dos principais museus do mundo (MoMA, Tate, Museu Nacional do Canadá, Inhotim…), como nos contava Carlos Antunes, tanto Janet Cardiff reconheceu que foi ali que a sentiu ganhar a sua mais surpreendente força de irradiação, como o técnico de som que a montara antes em cerca de 70 outros espaços, no fim, pediu se lhe arranjavam um sítio onde ficar por umas noites, pois queria regressar com a família para mostrar o resultado único que ali foi criado. Nunca como aqui vimos melhor ilustrada a ideia do passado como um piano ao nosso dispor, e ficamos desamparados diante desse instrumento que convoca a infância mais velha do mundo, todos os projetos e sonhos esboçados algures, todos esses caminhos apenas vislumbrados, as indicações, as tabuletas e os nossos estudos, as malas que chegámos a fazer em diferentes idades, as promessas íntimas que falhámos, alguns mitos maiores e menores que não chegámos a propor à circulação, tudo isso que está ainda em nós, nalgum quarto cada vez mais difícil de aceder, todos os elementos entre os quais nos fomos perdendo, «desmantelando e afinando os nossos sentidos». Parece que ouviu tudo, entrou sem querer no segredo, e terminado a visita depois com uma intervenção dentro de uma cisterna, um bar havaiano onde toca o Blue Velvet, simplesmente porque os artistas sabem como vamos ter saudades de Linch, e, então, descemos as casas depois de calçarmos umas galochas, a música de arrastar os pés dentro de água e ele a repetir que ela vestia um veludo azul entre néons flutuantes, aquele bar debaixo de água frequentado apenas por afogados talvez seja isto o fim quando nos apetece que os créditos passem sobre nós antes do escuro mas só depois de ter chovido tudo e se impor a fadiga da eternidade.
Author: Diogo Vaz Pinto
Published at: 2025-06-03 21:49:33
Still want to read the full version? Full article